Taxar o livro é podar o amanhã

A proposta de reforma tributária prevê uma taxa de 12% sobre o livro. Esse é apenas um dos pontos que expressa a incapacidade do Governo de enxergar minimamente a realidade dos fatos.




Colunas, Paulo Junior

Durante muito tempo se pensou não haver dúvidas sobre o papel transformador do livro, sobre sua capacidade de dizer nas entrelinhas e também objetivamente. Durante muito tempo se pensou que o livro, talvez, estivesse a salvo. Salvo por ser ele quem é, o alvo da libertação, o encontro de descobertas. Porém, como de costume, quem liberta não está salvo, pois é alvo.

As últimas duas semanas vem sendo marcadas pela proposta de reforma tributária do Ministério da Economia. Paulo Guedes, titular da pasta, encaminhou para o congresso uma proposição quem tem entre suas marcas mais dolorosas a tributação do livro. Segundo o que está posto, haveria uma taxa de 12%. Aparentemente, o ministro e seu staff, desconhecem a realidade brasileira, desconhecem o papel da leitura e literatura, estão cegos a crise do setor editorial, cegos para necessidade de incentivos à literatura. Como estão cegos não veem os fatos, ou fingem não ver, e neste caos que se instala, julgam prudente taxar a literatura. E assim, taxar uma nuvem densa de descobertas e sonhos.

O livro não é simplesmente um pedaço de papel, jamais será unicamente um amontoado de folhas, um tanto significativo de palavras. O livro é a abertura para um mundo que muitas vezes não se escreve no cotidiano, é o desabrochar de si mesmo, é o entendimento do que ocorreu no passado, o livro é a expressão do pensamento de que a vida não basta. Como ela não basta é preciso mais, é preciso olhar com mais amor, afeto, isso está na literatura. Aquelas palavras são magia expressa, são poesia de transcendência. O livro é o imbricamento do tempo e a sua reinvenção.

A justificativa indicada pelo ministro para a taxação é de que se trata de um produto da elite. Entretanto, o titular da economia esquece que o conhecimento não tem dono posto, e nem deve ter. Esquece que que leitura é direito, jamais privilegio. Esquece que não há país que aposte em educação sem jogar fichas consideráveis no incentivo à leitura. Paulo Guedes dispõe de uma estante vazia, claramente tem lido pouco, assim, acha que o restante do país não lerá, ou também não quer ler. Há nessa proposta uma incompreensão abissal dos duros, e complexos, problemas da matriz educacional brasileira. Evidencia, ainda, que não há ânsia por findar, ou buscar o fim, dessas duras questões. Afinal, a proposição em pauta tende a ampliá-las.

É bem da verdade que na média o brasileiro tem lido pouco, cerca de 2,43 livros por ano, segundo dados do Instituto Pró Livro. Porém, esse baixo índice tem entre suas marcas mazelas históricas nunca enfrentadas de modo adequado, desde problemas estruturais no sistema educacional, até o baixo número de políticas de incentivo à leitura e a produção literária. Acresce-se, ainda, que somente 17,7% das cidades brasileiras contam com livrarias, de acordo com dados do IBGE. Até mesmo os sebos tem encontrado árduas dificuldades para sua manutenção. Para indicar um exemplo próximo, a cidade de Juazeiro do Norte, hoje, não dispõe de livrarias, e alguns sebos históricos vem encontrando seu fim. Esse quadro não aponta para a progressão da taxação, aponta para necessidade de construir meios para que o livro chegue ao cidadão. Pois, mesmo na atual conjuntura, ou seja, sem os 12% de juros, o livro ainda é considerado aquém da realidade da maioria das pessoas. Nesse contexto, se houver o acréscimo pensado, ficará aquém de mais cidadãos. Logo, fica nítido que a questão não se direciona ao fato de que o livro é um artigo da elite, mas um projeto para que ele seja. No meio desse caminho cabe pensar se a elite brasileira, de fato, anda disposta a ler, em alguns momentos existem sérias dúvidas.

Seguindo por essa perspectiva, é importante ponderar que o Governo se gaba de buscar as melhores práticas internacionais, neste caso, como em muitos outros, segue na contramão. Em estudo realizado pela Associação Internacional de Editores, levantando dados relativos à taxação do livro em mais de 130 países, ficou claro que a maioria adota imposto zero ou uma carga mínima, distante dos 12% pretendidos.

Taxar o livro é taxar o desenvolvimento e o crescimento social de um país. Não há indagações de que a literatura, a leitura, o livro tiveram protagonismo na redução do analfabetismo brasileiro. Em 1991 19,3% da população acima de 15 anos era analfabeta, em 2017 esse número estava reduzido em 7,2%. Parte desse processo passou pela abertura dos livros. Passou pelo envolvimento nos poemas de Drummond ou Fernando Pessoa, pela escrita rica de Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, pela firmeza de Graciliano Ramos e tantos outros …

O imposto sobre o livro é o império da desconstrução do cidadão, é o caminho para despossuí-lo ainda mais de si mesmo, é a alavanca desoladora do caos cotidiano. O imposto sobre o livro é o imposto sobre o sonho, o desejo, sobre a possibilidade de amanhã. O imposto sobre o livro é a consolidação da elite do atraso, tão bem pensada por Jessé Souza.

Essa tributação esconde outros meios de buscar recursos para o Estado, por exemplo, a diminuição de renuncias fiscais, otimização da gestão dos gastos, observação efetiva de meios de controle e combate a corrupção. Além da própria criação de outros impostos, como a ampliação o imposto sobre heranças, lucros e dividendos, ou ainda a taxação equilibrada sobre artigos de luxo. Tudo isso conduziria a caminhos mais coerentes e, talvez, ajudasse a corrigir a secular injustiça do imposto nacional, onde quem tem menos paga quase tudo, e quem tem muito quase nada.

A União Brasileira de Escritores (UBE) posicionou-se contra a proposta e argumentou que as populações de baixa renda tem o direito de escolher o que desejam ler, não ficando sob a égide da posição político-ideológica do momento.

Mario Vargas Llosa ao receber o Nobel de literatura em 2010 indicou os males de um mundo sem literatura. Ele disse, “um mundo sem literatura se transformaria num mundo sem desejos, sem ideais, sem desobediência, um mundo de autômatos privados daquilo que torna humano um ser humano: a capacidade de sair de si mesmo e de se transformar em outro, em outros, modelados pela argila dos nossos sonhos”. Abrir um livro é voar momentaneamente, é sentir dúvidas, certezas, alegrias, tristezas, é sair do lugar comum. Taxar o livro é podar o presente e o amanhã, isso não se pode permitir fazer.