O apagamento da negritude como projeto

As mortes violentas da negritude brasileira já não chocam tanto, são rapidamente suprimidas do debate público, isso quando conseguem atingi-lo. Não é mimimi querer ser visto, respeitado, ter acesso a oportunidades. Não é mimimi desejar viver e sobreviver




Colunas, Paulo Junior

Qualquer sociedade se molda e se constrói sob um conjunto de múltiplas bases, influencias, estigmas, matizes culturais; tudo isso conflui em alguma medida para as interpretações sociais que aquele grupo vai atribuir a um conjunto ainda mais amplo de questões. Os preconceitos, as ações discriminatórias encontram repouso, infelizmente, nos processos de formação social, reside neles a origem do senso de superioridade que atinge alguns entes da comunidade nacional, e internacional.

A discriminação é quase sempre a regra, o verbo conjugado. E essa conjugação vai relegando parte significativa do corpo social. Corpo que é relegado à periferia, relegado a borda. Todavia, não trata-se de um corpo de difícil identificação, nele algumas marcas são fortemente perceptíveis, esse corpo é pobre e fundamentalmente negro.

A negritude esteve, e segue, sendo observada, porém sem o desejo de ser vista, enxergada. A negritude é percebida como mácula, como marca que deve ser ocultada, esquecida ou silenciada. Tal caminho indica claramente o porquê de alguns processos, explica também a motivação da revolta, do acordar.

Ser negro no Brasil é sentir dores profundas, é notar que os espaços continuam não sendo pensados para todos, notar que 55,3% da população é deixada de lado, ocultada em políticas públicas que muitas vezes não se efetivam e que servem, unicamente, como vitrine propagandista. Propaganda da pseudo inclusão.

Os movimentos que se espalham pelo mundo, e que tiveram início no EUA com a morte do segurança George Floyd, começam a chegar ao Brasil, se engendram pelas cidades nacionais e alguns atos já podem ser observados. Tal ressonância ocorre porque muitos gritos continuam presos na garganta, acontecem porque em algum momento é preciso dizer basta, dizer aquilo que entalado na garganta consome o ser negro e a sua capacidade de identificação.

Consome porque a matriz discriminatória é árdua, está enraizada a séculos e tem estruturas de difícil combate. Essas estruturas ensinam a negação, dizem sem medo que a beleza é branca e tem cabelos lisos. Essa matriz racista ensina o povo negro a negar-se, a olhar sua imagem e buscar despossuí-la. Tudo isso é traumático, doloroso. No entanto, trata-se apenas de uma pequena parcela do processo de subjugação e subalternização.

Nessa linha é preciso ser categórico ao dizer que não se vive em liberdade, a abolição é história, porém não é realidade. A população negra segue presa a amarras, correntes e alguns troncos. Presa, pois a exploração nunca enxergou seu fim, mas sim a sua reformulação, seu redesenho que se traveste em um ideal de liberdade. Liberdade predatória e arrasadora. Não é exagero realizar tal afirmação, especialmente quando os dados, infelizmente, confirmam. Atualmente, a cada 23 minutos um jovem negro é morto, 70% das mortes violentas atingem a população negra. Além disso, 75% da camada mais pobre da sociedade brasileira é composta por pessoas negras.

Em contrapartida a esse cenário, somente 10% dos cargos de chefia são ocupados por cidadãos negros, apenas 4,7% dos postos executivos. Essa mesma lógica se repete nos mais vastos espaços de poder, do Congresso Nacional às Universidades.

Há um projeto ardoroso em curso, o projeto do apagamento. Já não há mais desejo de silenciar, o objetivo é apagar, começar a situar essas narrativas no campo do puro e mero esquecimento. As mortes violentas da negritude brasileira já não chocam tanto, são rapidamente suprimidas do debate público, isso quando conseguem atingi-lo. Não é mimimi querer ser visto, respeitado, ter acesso a oportunidades. Não é mimimi desejar viver e sobreviver.

O discurso vazio do mimimi que ocupa algumas mentes é mais uma face desse processo que apaga o ser negro, suas histórias, lutas e bandeiras. O termo mimimi reduz a guerra ao racismo que precisa ser travada, reduz porque para parcela significativa do corpo social essa bandeira é desnecessária, porque para elas não existe racismo, para elas todos os tiros da polícia encontram justificativa.

Os gritos que se espalham são de basta, de chega, de nos respeitem. Chega de ocuparem todos os espaços, de quererem dizer tudo, de acharem que compreendem todas as faces da vivência negra. Chega!

Os gritos são gritos de insurgência. Gritos que querem que a necropolítica pare de ter cor, endereço e brutalidade característica. Grito que anseia por um amanhã com menos medo e angustia. É um grito para que o negro no espaço de poder seja mais cotidiano e menos histórico.

As mortes de Ághata Félix, João Pedro, George Floyd são apenas alguns dos rostos que o racismo e a brutalidade cercearam. Cercearam do direito a vida, ao sonho, ao abraço pós pandemia. Cercearam de ver o hoje, de caminhar nas ruas, de sorrir com os pais em um domingo à noite em frente a TV. O racismo cerceia a vida. O apagamento como projeto cerceia a lembrança, o direito de memória.

Há uma luta em curso, ela não findará com o fim dos protestos, ela seguirá por muito tempo. Ela exigirá que as ações transcendam as redes sociais, exigirá que todos aqueles que acreditam e defendem uma sociedade justa ajam, falem, se posicionem e rejeitem as estruturas da segregação.

Exige que o hoje seja espaço de reflexão continua, exige que o movimento negro não permita que sua luta seja ocultada por outras. Não se pode permitir que haja redefinição dos atos enquanto eles ocorrem, o combate ao racismo e a luta por uma sociedade antirracista não pode ser subjugada e colocada como anexa a algo. É urgente que os espaços sejam ocupados, que o grito ensurdeça, que artistas negros sejam ouvidos, lidos, citados. É necessário que a postura de “vidas negras importa” seja cotidiana e não virtual.

É urgente que a alegria de outras Ágathas não seja perdida, que a calma que João Pedro pediu a mãe torne-se possível. É urgente que seja possível respirar.