Infelizmente a ingestão da pandemia segue

O Governo Federal compreende a gravidade da pandemia vivida, mas prefere agir com base em discursos vazios e em lógicas que atingem o tom da desumanidade




Colunas, Paulo Junior

Em 19 de março esta coluna estrou no fooba.com.br, naquela ocasião a reflexão, naturalmente, girava em torno da pandemia e das ações, ou ausência delas, do presidente da República para controla-la e combate-la. O texto de estreia afirmava que Bolsonaro ainda não havia se dado conta da pandemia, o que era fato. No entanto, o que ocorre agora, cinco meses depois daquele texto, é ainda mais assustador.

Em março o Presidente ainda não havia compreendido a dimensão do problema, tratava tudo sob a lógica do superdimensionamento. Atualmente, o discurso da ignorância para a gravidade já não é mais possível, no cotidiano agosto de 2020 o presidente sabe, amplamente, a gravidade da atual situação. Sabe pelo grito dos números, de contaminados e de mortos. Ela sabe, porque está vendo dezenas de pequenas empresas fecharem as portas. Elas fecham, não em virtude do isolamento social, mas em decorrência da negligencia que assola a gestão da pandemia.

O Brasil vive alguns de seus piores dias da história. Porém, diferente de outros momentos, não se observa os entes políticos constituídos agindo efetivamente para pôr fim aos tempos de dor. Poucas vezes, talvez nunca, tenha se visto um gestor tão incapaz. Porém, pior do que ser incapaz é ser desumano. Olhando a história se verá que até mesmo em tempos de dura exceção ainda havia alguma empatia entre mandatário e nação. Entretanto, no contemporâneo 2020 a empatia do executivo federal foi minada, e hoje existe nos porões do descalabro.

É ensurdecedor que mesmo defronte a um quadro sem precedentes, a situação seja tratada com o limiar da normalidade. É assustador que não se vejam posturas coerentes das estruturas mais altas do poder público nacional. Fica a noção clara que se defende e abraça-se a morte. A concretização cotidiana da ausência paulatina do Estado na gestão, eficaz, da pandemia denota que no Brasil está se consubstanciando um Estado necropolítico. Seguidamente se vê que as estruturas agem mais na gestão do fim, ou seja, da morte, do que na busca pela preservação da vida.

No momento em que esse texto é publicado já morreram 101.136 cidadãos brasileiros, todos vítimas de coronavírus, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa. Uma parte significativa dessas perdas ocorre pela demora nas atividades do executivo federal. Demora na compra de leitos, equipamentos. Ocorre pela rasidão do discurso de que se trata de algo simples, rasidão do discurso da cloroquina. Ocorre pela ausência de um Estado que vem agindo de modo difuso, vazio. Ocorre, porque o país está a 87 dias sem um ministro da saúde titular.

Naturalmente que atingir mais de cem mil mortes é simbólico, há um peso enorme em uma marca dessas. Entretanto, é necessário lembrar que a causa dessas mortes tem endereço, as lacunas citadas anteriormente são apenas a ponta desse enorme iceberg. Portanto, ao atingir cem mil mortos é urgente que haja uma profunda mudança de postura. Pois enquanto o método de gestão, ou melhor, de ingestão, for o que vem sendo adotado, sinto afirmar, mas vidas continuarão a ser perdidas.

A exemplo disso aponta-se que o país está a semanas com a média móvel de mortes acima de mil, a média atual é de mil e uma mortes por dia. Apenas no domingo,09, foram notificados mais 543 óbitos. No bojo disso tudo o Brasil ainda ultrapassou a barreira, assustadora, dos três milhões de casos.

Infelizmente o quadro é denso e danoso. Danoso a todo o conjunto da sociedade, porque todo cidadão tem observado perdas nesse período. Enquanto uma mudança de posição não for impetrada, as dores, as mortes, as restrições… seguirão. Seguirão porque para notar o fim da guerra é preciso enfrenta-la devidamente, com método, perspicácia, inteligência e olhar humano. No quadro que é pitado hoje, esses adjetivos seguem em falta, ou sendo usados em doses mínimas, praticamente homeopáticas.

Mas as doses podem ser alteradas, o pintor do quadro pode optar por produzir esboços com maior capricho. Espera-se que o amanhã possa guardar um ambiente público que não é usado como ringue de batalha, e sim como ponte de diálogos necessários e que almejam a vida, em toda a sua potencia e existência. Que os discursos vazios do terraplanismo da cloroquina encontrem o grito do repúdio. E que as instituições democráticas ajam para que as dores da pandemia sejam aplacadas, para que o brasileiro veja mais luz e menos trevas. Enquanto não se encaminhar alterações profundas no entendimento, gestão e ação defronte ao coronavírus, o que se verá é o que está posto. E sinto dizer, se o que está posto seguir, a simbologia dos números também seguirá.