Há de se aprender com a Romaria de Nossa Senhora das Dores

Tem momentos que não cabem no coração.




Coluna do Paulo Rossi

FOTOS | Carlos Lourenço (Instagram:@lourenco.foto)

Tem momentos que não cabem no coração. O que eu vivi neste último sábado, dia 14, é parte disso. Sem tentar romantizar, estigmatizar ou generalizar, o que acho difícil conseguir diante da grandeza do que senti, peço licença para refletir sobre a Romaria de Nossa Senhora das Dores. Qualquer uma dessas três possíveis consequências é licença poética e não deve ser interpretada ao pé da letra nem levada às últimas consequências. Em um texto que fala sobre pluralidade, não poderia eu acreditar possuir a única narrativa possível.

O ponteiro do relógio de pulso marcava quase seis horas da tarde quando, indo ao Juazeiro deixar a minha avó na casa dos meus padrinhos, nos deparamos – eu e minha família – com um belíssimo desfile. Painho logo tratou de explicar: é o desfile dos ônibus, momento em que os romeiros saem pela cidade jogando bombons e se despedindo. As pessoas lotavam as ruas e andavam com sacolas cheias de todo tipo de doce possível. Parte disso tudo eu já sabia que existia naquela e em demais romarias – já sabia que os romeiros jogavam bombons -, mas não tinha dimensão de que aquele era um momento específico, quem dirá tão cheio de energia. Sinceramente: COMO EU AINDA NÃO HAVIA VIVIDO AQUILO? Na minha humilde opinião foi comparável ao cortejo do Pau da Bandeira, em Barbalha, por exemplo. Ali havia uma raridade, preciosidade e beleza únicas! Não me perdoei, de cara, por nunca ter participado antes.

Mas vida que segue: painho ficou tão animado que logo após deixar a minha avó no seu destino, nos convenceu a voltar de carro até a São Benedito, principalmente para apresentar tudo a Matheus, de dois anos. Quase não víamos o desfile, aliás já o pegamos quase no final. Corremos entre uma avenida e outra. E eu, encantado, achei tudo absolutamente lindo, um desfile de afetos tão forte que a energia gerada seria capaz de curar a maior das dores da alma. Descobri mais tarde que provavelmente só vivi aquilo tudo porque houve um atraso no acontecimento – um insight vem no meu pensamento agora: parece de certa forma destino eu ter estado lá, não? -.

Pairou em mim um sentimento de orgulho, de pertencimento. Tentando não partir para um olhar de identidade determinista, mas sabendo do agito que são os nossos corações, nossas diferenças e ainda sabendo da minha condição de privilegiado, meu peito quase explode ao sentir que ali houve uma manifestação do que nós somos enquanto nordestinos. Porque, lógico, entre tantas coisas que podemos ser, poxa, é isso que nós somos! É isso que eu sou. Meus olhos seguem cheios d’água. Há momentos em que você sente uma vibração positiva, uma alegria, felicidade, um amor compartilhado, uma euforia. E aquele foi do únicos em que vivi isso. A energia que pairava era de festa, de despedida, de comemoração, de um sentimento sincero de até breve. E não é isso que é a vida? Um até breve?

Aprendi ali lições de partilha fortíssimos. Não era só o Juazeiro que era compartilhado ali, ou o Padre Cícero, que por sua vez é nascido em Crato. É tudo nosso porque, dentro de algum eixo, dentro de algum momento, em alguma situação nessa vida, somos todos um. Um plural. Um mosaico de possibilidades. Quando cheguei a minha parada final, fiquei próximo a uma família. A mãe e algumas crianças. Logo puxei conversa. Todos ali já estavam, a essa altura, com sacolas cheias de bombons, e eu de mãos vazias. Eis que ao passo em que os últimos caminhões e ônibus passavam pela rua, as meninas começavam a pegar doces e a me entregar gentilmente, me ajudando a colher e juntar as minhas balas  – uma delas até me deu uma sacola para eu juntar tudo! -. Eu, tão chocado, agradecia enquanto o coração derretido pulava de entusiasmo. Achei aqueles gestos absolutamente potentes. Depois, quando retorno ao carro, meu pai me pede alguns dos bombons que eu havia recebido para distribuir aos seus alunos em sala de aula. Minha cabeça explode. Você é capaz de perceber também a potência nesses gestos todos de comunhão?

Em certo momento, painho ganhou até um crucifixo sem pedir. Simplesmente um cara passou por ele e o entregou – promessa sendo realizada? -. Meu primo Matheus soltava beijos enquanto os romeiros diziam tchau, Matheus. Era multidão. Era mundo e era Cariri. Era gente vinda de todo canto. Quando um dos ônibus parou, conversamos com alguns dos romeiros. Eram alagoanos simpáticos vindos de Maceió. Eles conversaram com Matheus também. Dávamos tchau, boa viagem! Porque somos um povo genuíno e generoso – quando quer -.

A confluência de sentimentos, o engarrafamento de pessoas e veículos, eu ali segurando o choro de tão emocionado – nada que eu conseguisse frear o suficiente a ponto de não me acabar em lágrimas ao chegar em casa -. Estava todo me tremendo. Tenho sido movido cada vez mais a entender o meu lugar, quem eu sou. É triste porque estou em um momento de partir por um tempinho, mas ir embora é meramente físico, carrego quem eu sou em quem eu sou. E tenho amado descobrir as possibilidades que existem em nós. Por incrível que pareça o acaso me fez uma surpresa que me deixou emocionado. Para mim, foi inacreditável: um evento cósmico de tamanha beleza que não acontece todo dia!

Senti um puta de um orgulho do meu povo, do que nós somos. Do afeto que pode nos unir. Que me perdoem as tristezas do mundo, hoje eu quero comemorar e viver o orgulho vivo de ser quem se é. Temos muito a aprender sobre como se deve agir, diziam e continuam a dizer as vozes reincidentes de uma cruel colonização que o mundo latino ainda vive. Mas hoje eu estou feliz porque eu acredito é que nós temos muito a ensinar, principalmente a quem acha que não está apto a ser aluno.

É óbvio que temos muito a aprender e a melhorar, orgulhar-se de quem se é não exclui refletir sobre quem se é e mudar tudo aquilo que precisa, com urgência, ser mudado. O machismo, o coronelismo e o patriarcado precisam ser revistos, mas nós podemos mudar porque o amor muda e é isso que nós somos. Uma resistência afetuosa. É no convívio, no dia-a-dia, no diálogo, na conversa, no afeto que a gente tem mudado várias coisas. Uma revolução do afeto. É nisso que quero acreditar, pelo menos hoje. Que me desculpe o leitor mais fervoroso, amanhã eu posso voltar a ser pessimista e acreditar na revolução armada, mas not today.

Lembrei de uma crítica ao longa Bacurau que o chama de um aplauso à perversão. Não é verdade mesmo que somos isso. Se tem uma coisa que nós somos hoje, dentro de todas as possibilidades, é amor e encontro. É no encontro que nós devemos nos concentrar para mudar. É como diz a música de Jeneci, num plural: Oxente! Tá na nossa frente! Está tão na nossa cara o segredo para nossa revolução. Debaixo do nariz. É microfísica do poder: nós todos somos os agentes da mudança, e ela acontece no dia-a-dia.

É aí que Bacurau erra mesmo, definitivamente, caso o ato final seja um esforço para nos mostrar quem somos e o que devemos fazer – e não acredito necessariamente que o filme pregue isso -. Nós não vamos vencer se agirmos com a mesma violência que agiram contra nós. Nós seríamos apenas iguais a eles. E nós podemos ser melhores. Nós vamos vencer é no afeto. É isso que nós temos que nos diferencia, é isso que tentam nos arrancar de Canudos ao Caldeirão, de norte a sul neste país numa eleição, e que não podem nos tirar. O nordeste me fascina: nós somos bravos e nós somos a beleza do encontro e da partilha. E não tem ninguém que segure isso. Avante!

Não é na morte e no massacre que a gente vai vencer, é justamente no contrário. É no afeto que a gente tem. E não importa o quanto tentem colocar estado contra estado, sotaque contra sotaque, no fundo nós todos sabemos de onde viemos e para onde queremos e devemos ir. O mundo é Coca, nós somos Cajuína. É na boniteza do verso, na boniteza do ser, do dizer e do encontrar, é no aconchego do olhar que nós podemos viver.

Voltemos: o que se permanece aqui é genuíno. Dias depois do desfile, João Hilário comentava no rádio sobre o quanto esses momentos são únicos, são manifestações nossas. A gente perde tanto tempo achando o que acontece na Europa, Estados Unidos, nas capitais do Brasil bonitas, e nós vivemos algo que é só nosso, mas que poderia e deveria ser compartilhado a todo o resto. Porque respeito, afeto e partilha são aprendizados importantes em tempos tão trevosos.

Pode ser ingenuidade minha ou mero devaneio causado pelo encanto, mas eu ainda acredito no nosso potencial de união. Não que sejamos literalmente um. Jamais! Nós somos muitos, nós somos vários, nós somos pluralidades. Mas acredito na nossa capacidade de conviver, de respeitar, de crescer e de entender que nossas raízes, o lugar ao qual pertencemos, nos une enquanto um só. Somos nordestinos. E é na fé ou na descrença, na folia ou romaria, no hibridismo da vida, no ok ou no oxente que batemos no peito orgulhosos: somos guerreira e amorosa gente! Há de se aprender muito com as manifestações que nos cercam. Há beleza e força na redescoberta do cariri feita por um caririense em plena romaria.

Em tempos como os que estamos vivendo, esse desfile é um exemplo de respeito. É um encontro onde quem veio agradece a quem daqui é e quem é daqui diz um sincero e sorridente até logo. É o encontro poderoso entre pessoas que compartilham. E não há no mundo coisa mais linda que compartilhar. É uma aula. Os romeiros e as pessoas nos ensinam. Enquanto a gente briga entre si, brinca com mesquinharias, as pessoas mais distantes e mais próximas nos dão ideais a serem seguidos. Não é questão de simplicidade, não é questão de romantizar, de tentar congelar a cultura ou algo do tipo, não é algo acadêmico, algo para ser estudado e é isso tudo: é afeto. E essa semana eu aprendi que o poder criado a partir do encontro entre nosso povo e da partilha é das coisas mais bonitas. Gratidão e um abraço carinhoso, querido leitor. Essa coluna é também um espaço de resistência: é nosso espaço para compartilhar afeto. Onde houver bala, entregue uma bala. É revolucionário!