Quem está escrevendo a história que você também vive?

Como protagonistas do nosso tempo, estamos nós escrevendo memórias sobre as experiências vividas em momentos históricos do agora?




Colunas, Joedson Kelvin

Mais uma manhã de sábado e, como de praxe, coloquei os podcasts preferidos para tocar enquanto iniciava o dia comendo uma boa fatia de mamão. Com a internet ligada, recebi mensagens que anunciavam a notícia de que o Vaticano acabara de autorizar o processo de beatificação do Padre Cícero. Logo rompi a falha tentativa planejada do final de semana e corri para a coletiva de imprensa realizada pela Diocese de Crato, a responsável pelos próximos passos que levarão o “Padim” às honras dos altares da Igreja Católica.

Já durante o caminho até a Basílica de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, fui tomado por sensações que misturavam-se entre a alegria de ver o Cariri mais uma vez dando as caras ao mundo, através de suas figuras emblemáticas, e a afobação de viver e assistir de perto as reações de quem recebia a notícia, sem perder um segundo de mais um momento histórico. No entanto, ao chegar, enquanto transmitia ao vivo a coletiva pelas redes da instituição onde trabalho, um pensamento mais profundo foi surgindo: “Nossa! Eu estou realmente vivendo esse momento? ”

Logo me veio a lembrança de que tenho apenas 24 anos e, embora jovem, tenho vivido muitos momentos importantes de uma história que eu também estou escrevendo. Em meio a lagrimas, relatos e homenagens póstumas a pessoas que escreveram trechos da história do Padre Cícero e da grande Juazeiro do Norte, me questionei qual era o meu papel ali, no exato instante em que celebrava-se o anúncio de tamanho reconhecimento. Estava nítido que a conquista da beatificação foi um trabalho de fé árduo, escrito a muitas mãos (e corações). Para além dos questionamentos, uma série de capítulos recentemente escritos passavam pela minha cabeça.

Sou de uma geração movida pela instantaneidade das informações e evaporação rápida das coisas. Uma geração que vive tudo e ao mesmo tempo não se dá o tempo de sentir o que vive. Quando li pela primeira vez a frase “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, tentei imaginar que tipo de – e como – coisas sólidas podiam se esvair pelo tempo e espaço. Hoje, como coautor da história que está sendo escrita no agora, questiono-me sobre a dificuldade de solidificar, integrar no campo sensível, as experiências vividas nesse exato instante que, amanhã, serão memórias. Nesse tocante, como produzimos memórias?

Antes de termos respostas, lembremos, portanto, que só existem memórias se houverem lembranças. Do contrário, as primeiras caem no esquecimento. Logo, lembrar é atividade da mente – e do corpo – para não fazer esquecer. No entanto, a maneira com a qual se lembra, na maioria das vezes, fica a cargo de quem não viveu diretamente o fato, fazendo da memória aquilo que mais esteja alinhado às suas respectivas convicções, vivências e percepções, muitas vezes, pessoais. Aí está o risco.

Sou de uma geração movida pela instantaneidade das informações e evaporação rápida das coisas. Uma geração que vive tudo e ao mesmo tempo não se dá o tempo de sentir o que vive.”

Em “Os perigos de uma história única”(2018), Chimamanda Ngoze fala da importância de escrever sobre aquilo que nós próprios, enquanto protagonistas, vivenciamos. Além de validar as histórias vividas e escritas por outras pessoas. Para a escritora nigeriana, “somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história única”. Ela se refere a um enredo escrito e repetidamente lembrado apenas por algumas percepções, de forma predominantemente unilateral, um artifício de poder narrativo.

Como protagonistas do nosso tempo, podemos elaborar a seguinte pergunta: Estamos nós escrevendo memórias sobre as experiências vividas em momentos históricos do agora? Quem são as pessoas que estão escrevendo sobre coisas que também estamos vivendo? Durante a infância, no tempo da escola, eu tinha o costume de questionar aos professores quem garantia a explosão do Big-Bang, uma vez que ninguém esteve lá antes do início (do início) do Universo. A pergunta parecua boba tal qual a eterna dúvida Quem veio primeiro? O ovo ou galinha? Para as duas perguntas, jamais tive respostas exatas, mas já sabia que eram elas que me moviam.

A meu ver, não necessitamos tanto saber, em resposta, quem está escrevendo a história que vivemos. Mas, precisamos ascender perguntas sobre nosso papel, bem como sobre esse tempo de tantos episódios históricos, pois assim também estamos escrevendo a história da qual fazemos parte. Afinal, quase sempre, as escritas – e histórias – mais geniosas partem de perguntas, e não da certeza de respostas. Os últimos anos vividos pela humanidade confirmam esse limbo vertiginoso, sem respostas e de dúvidas repentinas.

Entre efeitos irremediáveis provocados pela trágica combinação entre pandemia e crise econômica, além de episódios bárbaros cotidianos de violência racial, gênero e classe, evidenciados pela mídia, percebemos o quanto nosso tempo tem dificuldade de articular respostas como soluções concretas. Talvez, julgo dizer, o principal problema seja a falta de disposição – que também é um efeito irremediável do nosso tempo – para não deixar tornar banal e se “desmanchar” no ar, as cinzas de um fogo que não somos nós que estamos acendendo ou controlando, mas apenas nos queimando.

A ideia não é capturar, armazenar ou organizar milimetricamente tudo que acontece. Isso é tarefa impossível. Mas também não podemos estar alheios aos furacões constantes, tampouco a dias solares que esquentam a fogueira de nossos corações, (aqui especialmente falando do feito histórico relacionado ao Padre Cícero, privilegiadamente vivido por mim e por tantas outras pessoas).

Talvez, o caminho seja estarmos conscientes do que acontece, movendo perguntas, desde sérias às mais bobas. Mas conscientes. Dessa forma, certamente estaremos escrevendo a história de um tempo e espaço que nos pertencem. Afinal, não é à toa que somos nós as pessoas localizadas exatamente no tempo e espaço em que tudo e tanto está acontecendo, não é mesmo?