Crato não é cidade da cultura

É preciso aprofundar o debate sobre o que seja “cidade da cultura”. A afirmação pressupõe a existência de cidades sem cultura e ao mesmo tempo nos coloca diante da interrogação: o que é cultura para esse tipo cidade?




Coluna do Alexandre Lucas, Colunas

É preciso aprofundar o debate sobre o que seja “cidade da cultura”. A afirmação pressupõe a existência de cidades sem cultura e ao mesmo tempo nos coloca diante da interrogação: o que é cultura para esse tipo cidade? No caso do Crato (CE), é preciso contextualizar como esse termo foi concebido, para entender o quanto ele poder ser arriscado para o processo de democratização da pluralidade e diversidade do simbólico e um empecilho para gerir a política cultural.

O surgimento do termo “Crato cidade da cultura” tem origem como estratégia política das elites econômicas intelectualizadas para se contrapor ao crescimento econômico e populacional de Juazeiro do Norte (CE). Portanto, foi um termo ideologicamente usado para desqualificar saberes, fazeres e narrativas construídas pelo mosaico de vozes populares oriundas do Nordeste que tomaram a cidade de Juazeiro como lugar de acolhimento e de esperança.

A elite econômica intelectualizada do Crato, oriunda de uma elite agraria, com laços acadêmicos em Olinda, Recife e Fortaleza orquestrou um discurso que deu vazão a visibilidade do Cariri capitaneado politicamente pelo Crato e movida pelos ventos da modernidade e industrialização para se contrapor ao classificado como atrasado: as manifestações rurais e a população que formava a recente cidade de Juazeiro do Norte.

A modernidade e a industrialização como ferramenta discursiva não foram capazes de combater o crescimento de Juazeiro do Norte. A liderança do Padre Cícero descontruiu a hegemonia política do Crato e alavancou o crescimento econômico. Essa disputa política evidencia a cultura como elemento central de narrativa tendo como objetivos primários a manutenção de poderio político e econômico.

Essa disputa dos ricos tem efeitos históricos danosos e se reverberam no aspecto cultural e na compreensão das políticas públicas para a cultura.

É preciso combater insistentemente a desconstrução dessa ideia de “cidade de cultura” para que possamos ampliar a narrativa de entendimento da cultura enquanto processo permanente de construção e reprodução da vida humana, marcado por conflitos de classe e de acesso, múltiplas espacialidades, territórios e lugares, discurso inclusivos e excludentes, emancipatórios e opressores, códigos eruditos e populares, efemeridades, permanências e hibridismos.

Quem proclama “cidade da cultura” possivelmente tem as melhores intenções, mas ostentar esse título: Crato cidade da cultura, só reforça um discurso elitista, excludente e branco que máscara, encoberta e silencia a realidade pulsante, colorida, subversiva, transformadora e incabível no quadricular olhar da elite econômica.

Reafirmar que o Crato é cidade da cultura é negar a pluralidade e a diversidade estética, étnica, artística, literária, organizativa, política e cultural e também reafirmar os legitimados e esconder os deslegitimados que historicamente não participam dos espaços de visibilidade e de poder, institucionalizados ou circuitos oficiais.

O Crato precisa se reconhecer como cidade das culturas, em que o seu patrimônio arquitetônico e histórico encontra-se nos grandes prédios e nas minúsculas casas que se povoam de miséria e exclusão, nos espaços de memória das residências familiares, nas batidas dos tambores sagrados e profanos tocados nos terreiros das periferias, nos corpos dançantes que fazem brilhar de suor os espaços improvisados, na literatura que se pronuncia meio das ruas, nos postes embalados de poesia, nas brincadeiras que ocupam as calçadas, nas paredes que viram imensas telas, nas guitarras das garagens e nos violões das serenatas, na batida do beat e do maneiro pau, no reisado e no teatro, na gastronomia e no artesanato, nas contações de histórias e na medicina popular, nas inovações tecnológicas e nos saberes tradicionais, nas quadrilhas juninas e nas feiras, nas lapinhas e nos desfiles de moda, nas ocupações criativas dos territórios e lugares.

É na dimensão transversal da cultura, alinhada ao que denominamos de cultura de base comunitária, conjugada com o direito à cidade e a democratização e descentralização dos códigos eruditos e das inovações tecnológicas, no reconhecimento dos fazeres, saberes e do protagonismo popular, na distribuição desburocratizada dos recursos e na inclusão da diversidade e pluralidade do simbólico e no recorte de cor, gênero e classe, é que podemos romper com esse discurso elitizado que nada contribui para modificar a realidade, e desta forma impulsionar um novo contexto para constituição de uma perspectiva de cultura emancipacionista e que possibilite pensar o Crato, como cidades das culturas.