“Coringa” é um soco no estômago

Filme estreia hoje, dia 3, em todo o Brasil.




Coluna do Paulo Rossi

IMAGEM | Divulgação

Quando Coringa foi anunciado diferentes reações podiam ser observadas. Muitos contentes, muitos afirmando que se tratava de um filme desnecessário. Com estreia hoje em todo o Brasil, o longa não só é um acerto: é um marco do cinema ao trazer importantes debates à tona de forma violenta, mas crua. É um estudo de personagem dos mais ricos e bem construídos.

Com referências a Scorsese, a uma cena específica de Batman – The Dark Knight e centrado no protagonista, o roteiro funciona quase que apenas para desenvolver e mostrar a evolução de Arthur Fleck, um morador comum de Gotham que apesar de adulto ainda vive com a mãe em um apartamento pobre e trabalha como palhaço. Apesar de sutis pancadas iniciais e de podermos acompanhar a forma como essas sutilezas vão impactando a vida e saúde mental de Arthur, o ponto de virada para a história é marcante e volta a ser melhor trabalhado no último ato.

É que o filme é na verdade um grande debate acerca de privilégios, diferenças de classe, acerca da sociedade e de como ela se organiza deixando tantos cidadãos a margem enquanto outros se tornam figuras centrais e simbólicas por causa de seu poder. Poder esse construído muitas vezes esmagando os que estão embaixo, como a família Fleck.

Todos falham com Arthur. Ele era alguém que precisava de ajuda, mas isso lhe foi, assim como tantas outras coisas, negado. Uma das sacadas do filme é fazer você torcer pelo personagem, mesmo sabendo que o final vai ser trágico. Em algum momento ali ele poderia ter sido salvo, ter se transformado em outra pessoa? Poderia ter tido um desfecho melhor? O roteiro é de certa forma bem simples, gira em torno da construção do personagem, mas inegavelmente é fantástica a forma como todo o desenrolar é tão imprevisível quanto o protagonista. Você sabe como a história termina, mas não faz a menor ideia de como ela vai chegar lá. Isso te prende atenção.

A interpretação de Joaquin é brilhante. O ator consegue imprimir na forma do correr, do andar, do estar, do sentar, conversar, no olhar, no ser, na forma como mexe a coluna corcunda esquelética em várias cenas o seu personagem. Composição perfeita. A risada que em várias cenas não é espontânea, mas resultado de sua doença é visceral. E o ator nos faz perceber o que cada uma dessas suas risadas significa. Quando são espontâneas e não. Quando são causadas pelo nervosismo e quando não. Quando são propositais e quando não.

Cabisbaixo no começo, Arthur no final dança. As nuances que Phoenix dá ao protagonista são de uma riqueza e precisão de detalhes quase inacreditáveis. O ator atua com o corpo inteiro e é muito claro e perceptível pelo menos dois Arthur presentes ali, dentro da competente construção de seu arco: o inicial, fracassado, sem pintura e o final, transformado através da figura de Coringa, cruel, performático, forte, líder, macabro, bizarro. Quando o terceiro ato do longa começa, é impressionante: parece que estamos diante de um outro personagem, completamente oposto ao que vimos até então.

Numa Gotham suja, pixada, tão desequilibrada quanto o próprio Coringa, a violência do filme chama a atenção porque, como diz o diretor, “nós não estamos anestesiados aqui, ela é intensa”, diferente de outras histórias de super-heróis, em que milhares de pessoas morrem, mas não é possível sentir morte nenhuma. Cada morte em Coringa é sentida. O filme cria empatia e na verdade é sobre a falta dela e Arthur não é, de cara, o vilão da história – até porque a narrativa parte do seu ponto de vista, então acompanhamos um personagem bem mais realista, pé no chão, verossímil do que nos quadrinhos -. Não é sombrio, é realista. É um retrato social levado pelo/para o protagonista icônico às últimas consequências. E todo o precioso elenco entende que seus personagens possuem densidade e que são apenas acessórios: não há espaço para outro ali que não seja Joaquin.

Coringa é um filme sobre os efeitos e consequências que uma mente quebrada e violentada pode produzir. Ninguém é totalmente bom nem totalmente ruim, assim como no mundo, mas algumas escolhas são claramente erradas e/ou corretas. Os personagens são muito reais, isso é um triunfo do roteiro. A trilha é fantástica e ajuda a compor as cenas de forma sinestésica às vezes. A fotografia vai ao encontro da Gotham suja, meio esverdeada, azulada, amarelada, cinza, pálida, sem cor. Cansada. A direção de Todd é bem acertada e feliz em muitas sequências e enquadramentos e tudo, absolutamente tudo aqui gira em torno do Coringa. Então quando o personagem muda as cores do filme mudam e ficam mais coloridas, a trilha fica maior – inclusive uma faixa específica emula muito a composição de Hans Zimmer em The Dark Knight -, a narrativa começa a andar mais depressa, quase corre, e já chega ao final.

Coringa é impecável. Um soco no estômago com ótimas referências e uma construção rica. Joaquin Phoenix brilha e o terceiro ato é simplesmente inacreditável de incrível. Cruel, cru, forte. O filme não só complexifica o personagem como traz a sociedade como ela é: complexa.

A certeza da produção é que nós ainda vamos discuti-la muito. E que bom! A sociedade merece parar para tentar se entender, mesmo que precise de tanta violência para isso. Não é o filme mais violento e difícil do mundo, e as experiências são muito subjetivas, mas é importante você ir ao cinema preparado para ter uma experiência que é um soco no estômago. Ansiedade, angústia e loucura são algumas das coisas que você com certeza vai sentir ao longo das duas horas de filme. E que filme!