Cancelamento: o que nosso próprio espelho nos mostra?

Nós cancelamos quando descobrimos que somos os primeiros a nos cancelar, só de sentir o temível receio de sermos altamente vulneráveis ao cancelamento.




Colunas, Joedson Kelvin
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“Não julgueis para não ser julgado”. “Quem não tem pecado, atire a primeira pedra”. Essas passagens bíblicas, das quais não me recordo o nome do discípulo, nem capítulo ou versículo, poderiam, por si só, responder a muitas situações do nosso presente. Estamos dispersos entre a “militância chata” do conhecimento egoísta e a falta de paciência para discutir problemas sérios. Assim, preferimos fechar os olhos e furarmos o olho de quem é visto por nós. Mas quem somos nós? Também nos vemos? Também não somos vistos?

A sociedade que não deu certo é aquela em que a maior verdade é ser a pior mentira, a maior hipocrisia, a pura ironia. Todo dia um cancelado. Toda hora, uma nova pessoa com o título de “perfeita, nunca errou”, “tudo pra mim”, “sensata”. Receber o rótulo é fácil, difícil é mantê-lo. Quem continua segurando o título amanhã?

A caverna de Platão se desmoronou e o que sobrou foi a visão de um canhão, que não unilateral, pode estar, ao mesmo tempo, mirado contra aos outros e a nós mesmos, num piscar de olhos. A sociedade da contradição é aquela em que a moral e os bons costumes se confundem com um marasmo de julgamentos que a própria crença ou ideologia podem, na teoria, serem contra. Mas nem toda prática segue a teoria, e vice-versa.

Nos últimos dias, vimos o entretenimento virando tribunal, e os dirigentes da triste situação da vida real passarem desfilando por detrás das cortinas de fumaça, basta ver o tanto de desmantelo acontecendo no Brasil. Estamos concentrados na dispersão, ou melhor, na fuga do que mais nos faz penar ou do que mais nos coloca à prova. Errados? Não. Afinal, quem somos nós para nos julgar. Estamos programados a varrer a poeira pra debaixo do tapete, deitar em cima, e assistir quem tem a vida ou o comportamento que nos refletem.

O pior é quando percebemos que quando a poeira sobe, somos os primeiros a engoli-la. Nós cancelamos quando descobrimos que somos os primeiros a nos cancelar, só de sentir o temível receio de sermos altamente vulneráveis ao cancelamento. Estamos tão adoecidos que também adoecemos sem perceber. Somos nós o doente e a própria doença. O sujo que muitas vezes não busca se limpar. Na limpeza da vida, para quem podemos passar o pano? Um dia, escutei uma frase que jamais esqueci: “um doente não cura o outro, antes de curar a si mesmo”. E, talvez, isso define bem onde e como estamos.

Numa sessão de terapia, a primeira que tive, a psicóloga pediu para que eu fosse para o lugar da sala que mais definisse como eu estava me sentindo. Fui parar debaixo de uma mesa de vidro, onde mal conseguia me mexer. Encolhido, com 1 e 80 de altura, foi como se a qualquer passo em falso que fosse dado, o vidro caísse por cima de mim e pronto, jamais pudesse consertá-lo. Sim, a quebra do vidro seria a minha maior preocupação, não o fato de certamente me cortar, mas o fato de que o meu deslize pudesse virar uma sentença. O medo de cometer o erro e de ser rejeitado é tão doloroso que pode silenciar a própria dor que faz com que nos coloquemos constantemente debaixo de uma mesa, de vidro.

Ignorar os nossos defeitos, incubar os nossos erros e dores nos faz, muitas vezes, destilá-los sobre os outros. Não damos a mínima chance aos erros do outro porque sabemos que, quase sempre, é difícil nos dar novas chances.

Estamos perdendo a capacidade de discordar, falar, de errar, e esquecendo que é a partir do diálogo, do acolhimento e dos erros que aprendemos a ser melhores. Não nos aprovamos quando não tomamos nota que também reprovamos o outro. Cadê a recuperação? É difícil nos satisfazermos com a média, quem dirá com algo menor que ela. Duvido termos sido sempre as notas dez no boletim que jamais nos definiu por completo. Estar em paz não é estar sempre certo. O segredo, muitas vezes, é saber que o espelho que quebramos também nos despedaça. Sempre haverá tempo de consertá-lo. Tenha interesse. Se permita e permita curarmo-nos.