A saída de Moro e o desmonte do Governo

Moro não sai como herói, passa distante desta alcunha, sai porque está vendo o desmanchar seguido do governo, porque sabe que se seguisse estaria pondo fim em suas pretensões, sai porque sua vaga no STF estava tornando-se longínqua




Colunas, Paulo Junior

Em janeiro de 2019 a atual gestão federal tomava posse, os discursos eram múltiplos. Todavia, imperava no Palácio do Planalto e no Palácio da Justiça um ideal midiatizado, o combate a corrupção, bandeira master da campanha de Bolsonaro, porém, quem resguardava a bandeira não se tratava do mais novo ocupante do Alvorada, mas sim Sérgio Moro, nomeado Ministro da Justiça e Segurança Pública. Entre muitos afagos públicos, promessas de autonomia e carta branca passaram-se dezesseis meses e, assim, em uma manhã de sexta-feira aquele que era tido como indemissível, pediu demissão. Com sua saída transmitida por quase todos os canais abertos de televisão, às 11h da manhã do dia 24 de abril de 2019, Moro colocou o Governo Federal na maior crise política desde seu início.

 A relação entre os dois já vinha dando sinais de desgaste a algum tempo, no entanto, o status de Moro, a carga de popularidade arraigada a ele, o apoio da ala militar, da base do governo no congresso, do empresariado que ainda ampara o presidente; tudo isso conduziu a sua permanência até o presente momento, mesmo diante dos embates públicos que já haviam sido travados.

 Moro sofreu uma sequência de derrotas, a primeira ocorreu ainda no início da gestão, quando o ministro tentou indicar a cientista política Illona Szabó para suplência de um dos diversos conselhos da pasta da justiça, Bolsonaro não gostou da ideia, afirmou, à época, que a profissional defendia bandeiras incompatíveis com a sua gestão. Diante da negativa do presidente, Moro vetou o nome de Illona, que já havia sido convidada. Além disso, o ministro perdeu o controle do Coaf (Conselho de controle de Atividades Financeiras), chefiado pelo Banco Central.

 Acresce-se, ainda, as declarações que o site The Intercept tornou públicas, através de um ciclo de reportagens conhecido como ‘Vaza Jato’. As trocas de mensagens que o site teve acesso demonstrava a interação irresponsável, e inconstitucional, entre o Ministério Público e o juiz. É necessário citar, também, as perdas que o Pacote Anticrime formulado pelo ministro sofreu, sendo bastante desidratado em sua versão final, aprovada em dezembro de 2019, a criação do juiz de garantias é um exemplo, Moro foi contra e Bolsonaro sancionou.

Mais recentemente, os maiores embates se deram na possibilidade de recriação do Ministério da Segurança Pública, minando o poder do ministro e tirando dele uma de suas principais publicidades, a redução do número de registros de crimes graves, já que a gestão das polícias passaria automaticamente para a nova pasta. A animosidade gerada necessitou da presença da ala militar para acalmar os ânimos, demovendo o presidente da ideia de recriação e assegurando a permanência de Moro.

Todavia, o estopim final, aquilo que tornou a interação entre os protagonistas deste texto insustentável, foi o desejo de Bolsonaro em alterar o comando da Polícia Federal, demitindo Maurício Valeixo da função. Valeixo é delegado de carreira da instituição e era uma indicação particular de Moro. Chamado ao gabinete do presidente na última quinta, 23, para discutir tal mudança, o ministro posicionou-se contrariamente e, segundo ele, apontou para possibilidade de rediscutir a ideia, fato que não ocorreu. Assim, na madruga da sexta, 24, pouco depois das 04h da manhã a exoneração do chefe da PF (Polícia Federal) foi publicada. E Moro? Ficou sabendo ao chegar ao Palácio da Justiça, na exoneração de Valeixo a assinatura de Moro é praxe, não realidade.

 Diante dos fatos, o superministro, que sempre foi tido como indemissível, convidou a imprensa e em uma declaração de trinta e oito minutos expôs a sua saída do Governo. A fala do ainda ministro, esclarece alguns pontos substanciais, ele deixa claro o anseio de interferência política na PF, afirmou que o Presidente quer alguém para quem possa ligar, pedir relatórios, alguém que usurpe competências e que ajude a construir não um espaço democrático, mas autoritário.

 Moro diz que sai porque sua carta branca foi rasgada, porque a autonomia foi demovida, porque não há liberdade, porque deseja proteger a PF. Mas ele também sai porque nota o degringolar da gestão, porque enxerga a incompetência usual de seu chefe, sai porque tem pretensões políticas  e precisa galgar espaço para concretizá-las. Moro sai, não para preservar sua biografia, mas para não a atrelar ainda mais ao egocentrista Jair Bolsonaro.

Segundo o juiz de primeira instância, o presidente reconheceu que a interferência era um ato político. Moro diz que o importante nessas situações não é a troca, mas o porquê dessa troca. Neste caso, é importante ponderar que a substituição ajuda a clã Bolsonaro, que vive sob a lógica das gavetas fechadas e da senha máxima, quase todos os membros da família contam com investigações de algum nível. Flávio Bolsonaro, atual senador por Rio de Janeiro, é investigado pelo esquema de rachadinha, fato provavelmente ocorrido quando este era deputado estadual.

A saída de Moro expõe a incompetência do Governo, que não trabalha para estancar crises, mas para aprofundá-las, trabalha para viver constantemente sobre o céu do caos. Porém, como dito na última edição desta coluna, o caos é a ordem. A ausência de Moro significa a ausência de muitos apoiadores. Apoiadores que se ligaram ao presidente pela presença do ministro. Além de manchar sua já inlimpa imagem. Mergulhado na crise desde a manhã da sexta, 24, o governo demora, é lento, passou o dia vivendo um silêncio vazio e tenso. Silêncio que indica inabilidade política e susto.

Ao falar no fim do dia, Bolsonaro reuniu a tropa, todos os ministros, inclusive Guedes, que também anda afastado, talvez um dos próximos a sair. O pronunciamento trouxe pouco, como é usual. Durante cerca de uma hora, o presidente exclamou sobre o fato, foi categórico ao dizer que sabia que o ministro pediria demissão, disse ainda que confidenciou a auxiliares que esta sexta seria o momento em que todos veriam quem não o queria na presidência.

 Bolsonaro afirmou que Moro deu mais atenção para o caso Marielle Franco do que para a facada sofrida por ele em setembro de 2018. Rebateu as falas de que teria pedido acesso a investigações. No entanto, deixou claro que julgava importante ter alguém para quem pudesse ligar e pedir informações. Disse que se tratava de uma prerrogativa sua as alterações de comando e que poderia fazer isso sem pedir autorização ou falar com ninguém. Acusou o ministro de barganhar a demissão de Valeixo por uma vaga no Supremo Tribunal Federal, vaga que será aberta em novembro. O mandatário federal lembrou, também, que conferiu autonomia e carta branca a todos os ministros, entretanto, subiu o tom ao dizer que isso não significava soberania. Por fim, foi categórico, segundo ele, se Moro deseja independência deveria ser candidato.

 Bolsonaro e Moro são criaturas que de certo modo se retroalimentam, a ala militar tentou aplacar a ideia do embate entre eles, buscou que tudo permanecesse como estava, sabe que está saída expõe a gestão a turbulências graves. Porém, a briga de egos seguiu.

Todas as ações foram pensadas politicamente, Moro sabe de seu capital eleitoral e certamente irá usar, ele saiu do governo para se firmar como pré-candidato à presidência em 2022. Saiu para não atrelar sua imagem ao desmonte da atualidade. Bolsonaro, sabia/sabe das intenções de Moro. Logo, buscou um modo de força-lo a sair, buscando, dessa forma, diminuir o ônus de demiti-lo.

Essa situação gerou alguns momentos no mínimo icônicos, Moro escancarou, ainda mais, a sua face política, reconheceu que os governos petistas asseguravam autonomia as instituições de investigação. Do outro lado, Bolsonaro mostrou que a tão falada influência do grupo de militares do governo tem fim, ela esbarra na família, no clã Bolsonaro, os filhos são o guia maior das decisões. Flávio estava no pronunciamento do pai, ele é um dos principais interessados na mudança da PF.

 A repercussão do pedido de demissão foi automática, o mercado financeiro reagiu rápido, às 12h22 registrou queda de 9,6%, próximo de acionar a paralisação das transações financeiras. No restante do pregão houve uma pequena recuperação, mas a redução ainda foi elevada, da ordem de 5,45%. O dólar também atingiu patamar elevado, chegou a ser comercializado acima de seis reais, mas fechou o dia em R$5,59, um dos maiores valores da história.

Governadores foram quase que homogêneos ao indicarem o desapontamento com a saída do ministro. João Dória (PSDB), governador de São Paulo, disse que é uma grande perda ao país, Carlos Casagrande (PSB), governador do Espirito Santo, lembrou que a permanente instabilidade do governo fragiliza as instituições. Camilo Santana (PT), governador do Ceará, disse que o mais grave da saída do ministro são os motivos apontados para a mudança, por sua vez, Carlos Moisés (PSL), governador de Santa Catarina, chegou a oferecer emprego para o juiz, assim como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).

No meio judiciário, diversos ministros do STF se manifestaram, Marco Aurélio Mello disse que sua admiração pelo ministro cresceu, já Luís Roberto Barroso afirmou que esta situação conduz a um arrefecimento dos processos de combate a corrupção. A OAB disse que solicitou a sua Comissão de Estudos Constitucionais uma análise detalhada do pronunciamento de Sérgio Moro. A Fenaj (Associação de Juízes Federais) lembrou que espera que o próximo a assumir a pasta siga elegendo uma política de estado focada em grandes questões nacionais, como combate a corrupção e ao crime organizado, por sua vez a Conamp (Associação dos Membros do Ministério Público) lamentou a demissão do ministro, afirmou que este não pode seguir alguém que não tem o mesmo afinco que ele.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), assim o PSL, A Rede Sustentabilidade, PSB e PDT informaram por meio de suas assessorias que irão ingressar com pedidos de impeachment do atual presidente, tais pedidos estarão embasados na declaração de demissão proferida por Moro na manhã da última sexta, 24.

A repercussão dessa decisão será larga, é uma dimensão difícil de mensurar. Moro se valeu de trocas de mensagens com o presidente e com a deputada Carla Zambele para comprovar minimamente aquilo que alegou, essas mensagens foram mostradas para o país inteiro na noite de ontem, 24, durante o Jornal Nacional, principal telejornal da Rede Globo, algoz antigo do presidente.

Moro não sai como herói, passa distante desta alcunha, sai porque está vendo o desmanchar seguido do governo, porque sabe que se seguisse estaria pondo fim em suas pretensões, sai porque sua vaga no STF estava tornando-se longínqua. Moro agiu cirurgicamente, entrou com forte apoio popular e sai com grande parte dele. Moro estrategicamente deixa o cargo e coloca a gestão em crise, usa isso para mostrar sua força no seio de seguidores bolsonaristas, mostra que está vivo e no jogo político.

 O barco está esfacelado e segue em processo gradual, o ideal da não política é o exercício da velha política. Esta, praticada por Bolsonaro e por Moro. Sem grandes gestões para defender, é notório que o ataque é a frequência adotada. Os protagonistas estão em suas trincheiras, elaboram suas defesas, pois a batalha ainda é longa.

 No meio do pronunciamento de Jair Bolsonaro o Ministro da Economia, Paulo Guedes, olhou seriamente para o relógio, como quem se questionasse quando aquilo acabaria. Moro saiu da infantaria, alguns outros estão por vir. Provavelmente Tereza Cristina, da Agricultura, será a próxima, filiada ao Dem, o partido já articula sua saída.

Bolsonaro vive um pesadelo, está em um cargo que transcende suas capacidades, não compreende os elos democráticos e desrespeita as instituições. Vive em eterna cegueira, resguardado em sua bolha acredita que seu poder é ilimitado, que o grito é capaz de impor tudo. Acredita que a contestação é símbolo de desrespeito. Perdido, ele não sabe como conduzir as grandes questões nacionais. E Moro? Moro não estava perdido, ele sabia de seu caminho, estrategicamente pensado, ele conduziu meticulosamente os detalhes até o dia de ontem, conduziu a ampliação de sua imagem e o desligamento dela de outras. Moro costurou nesses dezesseis meses a consolidação de seu passe para 2022, costura que levará o país a mais uma disputa eleitoral polarizada e de pouca profundidade. A esperteza política que falta em Bolsonaro, sobrou à Moro. Resta ver os próximos capítulos da novela.