A crônica saída de Mandetta e a dúvida sobre o futuro

Luiz Henrique Mandetta preparou, gestou lentamente o momento de sair. Ele sai repleto argumentos para possíveis acusações que possam chegar, encontra respaldo para suas ações até em artigos recentes de seu sucessor na pasta




Colunas, Paulo Junior

Na edição anterior, está coluna refletiu sobre a situação que o ainda Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, enfrentava. No texto haviam algumas ponderações que apontavam os motivos pelos quais Mandetta poderia ser considerado vítima de si mesmo. Há uma semana, o político do Democratas gozava de um largo apoio da ala militar do governo, membros com grande influencia sobre as decisões tomadas por Jair Bolsonaro. Contava, ainda, com largo apoio da base do governo no Congresso Nacional, situação que lhe garantia permanência no cargo. Entretanto, política é algo veloz, age na rapidez de um piscar de olhos. E hoje, uma semana depois, Mandetta encontra-se demitido, saído do Ministério da Saúde depois um embate interno que durou sessenta dias, desde as primeiras ações de combate ao novo coronavírus.

A situação entre os dois polos deste duelo vinha tornando-se insustentável, não havia quase que nenhum consenso, tanto que o Presidente já buscava meios de desligar o ministro a alguns dias. Mesmo antes do primeiro registro de casos da doença no Brasil, Luiz Henrique Mandetta já afirmava que a OMS (Organização Mundial da Saúde) estava postergando demais a definição de um estado de pandemia global. Enquanto isso, seu chefe, o Presidente da República, já produzia um arsenal inigualável teorias de cunho absurdo, menosprezando aquilo que se torna a cada dia, a pior situação de saúde pública desde a gripe espanhola de 1918.

A defesa persistente pelo isolamento social, permitindo que apenas trabalhadores essenciais seguissem realizando suas atividades, era o principal ponto de discórdia entre o Palácio do Planalto e o Ministério da Saúde. Enquanto o primeiro proclamava que tal ação era desnecessária, apontando para o fim das recomendações de isolamento, o segundo as refirmava cotidianamente. Mandetta era categórico em todas as coletivas de fim de tarde, falava seguidamente da necessidade de manutenção desta ação ainda por algum tempo, chegando inclusive a recomendar que a população ouvisse os governadores de seus respectivos estados, e adotassem as medidas por eles implementadas.

O embate frontal entre essas duas forças, e percepções, teve alguns notórios capítulos, as saídas do Presidente para seus passeios e encontros com populares, a quase demissão do ministro à dez dias atrás, as declarações e ameaças de Bolsonaro ao chefe da pasta da saúde, e as recentes declarações de Mandetta sobre a conduta de seu chefe. Todo este quadro foi sendo pintado com o afinco de Van Gogh e com o despreparo de uma criança que pega o pincel pela primeira vez. O conjunto desordenado, o desalinhamento entre os tons e tintas escolhidas conduziu o Ministério da Saúde a incógnita que hoje vivência.

A pincelada definitiva para finalização do quadro foi dada por Luiz Henrique Mandetta no último domingo, 12. Em uma entrevista concedida ao Fantástico, programa da Rede Globo, o ministro foi enfático, pela primeira vez não poupou palavras, e pode-se dizer, foi publicamente insubordinado. Mandetta deixou claro que estava desconfortável com a situação que enfrentava, o duelo diário entre sua narrativa, embasada pela ciência, e a narrativa idealista do gestor maior da República.

A entrevista tem um conjunto de símbolos extremamente importantes, conjunto que demarca que aquele momento foi clinicamente pensado. O ministro conduziu ali a sua saída do cargo. É notório que Bolsonaro tem repúdio ao Grupo Globo de comunicação, no entanto, Mandetta escolhe exatamente o principal meio deste grupo para apontar suas perspectivas. Havia uma cisão tão grande que ao ser questionado sobre a entrevista do ministro, Bolsonaro limitou-se a dizer que não acompanha a Rede Globo, por isso não viu.

Acresce-se, ainda, o local em que o ministro estava, o Palácio das Esmeraldas, sede do Governo de Goiás. Mandetta não é goiano.  Presidido por Ronaldo Caiado, também do Democratas e desafeto público do presidente, também por causa do modo de condução adotado durante a crise de saúde. Ronaldo Caiado é médico e já se posicionou publicamente contra os métodos de gestão de Jair Bolsonaro.

Outro fator que demarca a entrevista como ato político e partidário, é o lógico aval concedido por Rodrigo Maia (Presidente da Câmara) e Davi Alcolumbre (Presidente do Senado), ambos do mesmo partido que Mandetta, o Dem. Visivelmente cansado, o ainda ministro deu naquele domingo a sua cartada final, afim de demarcar e alastrar seu arco de apoios, ou buscando sair daquela trincheira. Trincheira que ele ajudou a construir e a povoar, fato lembrado na edição anterior desta coluna.

A saída foi anunciada no início da semana e programada para ocorrer entre quarta e sexta, no fim ocorreu na última quinta, 16. No entanto, esta programação não impediu que uma turbulência final fosse sentida, quando Luiz Mandetta recusou o pedido de demissão de um de seus secretários mais próximos, tratava-se de Wanderson de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde. Em coletiva realizada na quarta,15, o ministro afirmou que entraram juntos e assim sairiam.

Notoriamente a demissão foi duramente criticada pelos governadores dos estados, eles apontam preocupações no que tange o seguimento do combate a pandemia, especialmente porque o ministro era muito bem avaliado, tanto pela classe política, quanto pela sociedade; fato corroborado por recentes pesquisadas do Instituto Datafolha. Os presidentes das casas legislativas redigiram uma nota conjunta, nesta eles afirmam reconhecer que a saída do ministro “será sentida por todos”. Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, também realizou críticas sobre a demissão. Veículos internacionais repercutiram a notícia, o The Guardian chegou a afirmar que a demissão tem potencial para produzir uma revolta pública. Por sua vez, o The Washington Post lembrou dos embates entre o ministro e o presidente. Vale lembrar que o jornal americano elegeu, recentemente, Bolsonaro como o pior líder mundial no combate ao Covid-19.

Diante de tudo isso, é imprescindível pontuar que Luiz Henrique Mandetta ganhou notoriedade e uma expressão política que ele não tinha antes. Saiu do cargo politicamente maior do que entrou. Não é necessário grandes poderes místicos para ter certeza que ele sabe disso e usou o quanto pôde a seu favor. Mandetta deixa o cargo bem avaliado, saí como médico que não abandona o paciente. Ele deixa o ministério quase que na posição de mártir. Caminhando para uma construção partidária mais forte, o Democratas, seu partido, também sabe de todos esses detalhes e pretende usá-los.

Luiz Henrique Mandetta preparou, gestou lentamente o momento de sair. Ele sai repleto argumentos para possíveis acusações que possam chegar, encontra respaldo para suas ações até em artigos recentes de seu sucessor na pasta. Mandetta não deixará o noticiário facilmente, ainda estará presente e colocará fortemente suas opiniões e posições. O capital político seguirá sendo trabalhado, e não será nenhuma grande surpresa vê-lo como candidato nas próximas eleições, pois ele encontra-se sem cargo público, pois não disputou a reeleição para a Câmara Federal. Certamente ele contava que ficaria quatro anos no cargo e, provavelmente, teria ficado, o desalinhamento com o Planalto Central veio apenas depois do coronavírus, antes disso o que se via era um alinhamento por inteiro. Em alguns momentos tratava-se do alinhamento do desmonte.

O escolhido para a sucessão é Nelson Teich, médico oncologista e empresário. Teich vinha defendendo em uma série de artigos a manutenção do isolamento social e elogiou algumas vezes a gestão de seu antecessor. No entanto, já é possível perceber o afrouxamento em seus métodos, Teich afirmou em seu discurso de posse que será guiado pela ciência, que suas decisões serão técnicas. Todavia, em seguida, foi enfático ao dizer que havia um alinhamento total com o Presidente. Fato no mínimo contraditório, pois Bolsonaro tem repelido a ciência. Em entrevista à TV Record, na noite de quinta, 16, o novo ministro já chegou a ponderar sobre meios de diminuição do isolamento social, pois, segundo ele, as pessoas sentem falta de sair e ter a vida normal. Esse posicionamento encontra repouso nos apontamentos constantes de Bolsonaro, que já avaliou definir o fim do isolamento social de modo solitário, a partir de decreto presidencial e agora avalia realizar esta ação via projeto de lei. Entretanto, é fundamental trazer a informação de que 76% dos brasileiros, segundo DataFolha, são favoráveis as medidas de isolamento.

Há ainda uma sequência de temores sobre a possibilidade de manipulação dos dados de casos, mortes e suspeição. Tal temor é justificado pela urgente necessidade que o Presidente tem em justificar seu ideal de pensamento. Afinal, segundo ele os problemas causados pela Covid-19 já estão indo embora, em contrapartida estudos produzidos no seio do Ministério da Saúde apontam para um aumento exponencial no número de casos nos próximos dois meses.

O Ministério da Saúde vive um momento de incógnita, o combate ao coronavírus vive agora sob o signo da dúvida. Os próximos passos do novo ministro devem ser notados com atenção e cobrança. Assim como devem ser voltados olhos e percepções sobre as ações de seu antecessor que neste momento gesta meios de usar seu atual tamanho político, por mais que sua última imagem no ministério tenha contrariado suas próprias recomendações. Mandetta deixou o cargo sob aplausos de sua equipe. Teich tem uma missão complexa, pois terá que equilibrar o devaneio presidencial e a ciência.